— A manhã se aproxima, Lorde Anão — pela quarta vez disse Alcairos, na soleira da porta.
Aziel tentou abrir os olhos, mas estes pareciam feitos de chumbo e não cederam sem que antes o anão empregasse um grande esforço. Uma vez abertos, ele bocejou e se ergueu. O simples fato de mover tanto a cabeça lhe causou tanta dor e mal estar que ele teve que congelar todos os movimentos do corpo por um instante.
— Busque um copo de água, sim? — pediu. — Minha boca está seca e minha cabeça em frangalhos.
Alcairos deu dois passos para trás e sumiu. Aziel cobriu o rosto com as mãos e, lentamente, voltou a repousar sua cabeça naquele travesseiro de lã tão momentaneamente confortável. Ele tentou lembrar da noite passada, mas apenas borrões e imagens desconexas vieram a sua mente. Então ele lembrou das pessoas mortas e principalmente das crianças, e uma lágrima mais uma vez escorreu e se perdeu em sua barba.
Aziel tentou abrir os olhos, mas estes pareciam feitos de chumbo e não cederam sem que antes o anão empregasse um grande esforço. Uma vez abertos, ele bocejou e se ergueu. O simples fato de mover tanto a cabeça lhe causou tanta dor e mal estar que ele teve que congelar todos os movimentos do corpo por um instante.
— Busque um copo de água, sim? — pediu. — Minha boca está seca e minha cabeça em frangalhos.
Alcairos deu dois passos para trás e sumiu. Aziel cobriu o rosto com as mãos e, lentamente, voltou a repousar sua cabeça naquele travesseiro de lã tão momentaneamente confortável. Ele tentou lembrar da noite passada, mas apenas borrões e imagens desconexas vieram a sua mente. Então ele lembrou das pessoas mortas e principalmente das crianças, e uma lágrima mais uma vez escorreu e se perdeu em sua barba.
— Oh, deus — ele gemeu baixinho, cocando os olhos e os deixando mais vermelhos.
Ele fungou e em seguida soltou um longo suspiro que pareceu se estender por toda aquela manhã barulhenta. Respirou de forma lenta, ritmada, e abriu os olhos. Encarou o teto de madeira daquela casa, tentando imaginar a forma como viera parar ali e por que aquele humano ainda estava vivo.
Depois de um tempo Alcairos voltou. Trazia uma caneca de madeira com água até a borda.
— Não posso garantir a qualidade da água — falou. — A chuva fez o poço transbordar noite passada, então...
— Não posso garantir a qualidade da água — falou. — A chuva fez o poço transbordar noite passada, então...
— Não se preocupe com isso — cortou Aziel. — É água, isso que importa.
Ele tomou um bom gole, deixando a caneca pela metade. Sentiu o líquido fresco saciando sua sede e limpando sua boca de forma que o gosto rançoso que estava em sua língua desapareceu completamente. Aziel então ergueu a caneca um pouco acima da linha da cabeça e despejou um pouco da água em seu rosto. Com as mãos ele espalhou a umidade de forma a esfriar seu rosto. Estava com uma ressaca tão forte que até cogitou a possibilidade de não sair da cama.
— Quando acordou? — perguntou o anão.
Ele tomou um bom gole, deixando a caneca pela metade. Sentiu o líquido fresco saciando sua sede e limpando sua boca de forma que o gosto rançoso que estava em sua língua desapareceu completamente. Aziel então ergueu a caneca um pouco acima da linha da cabeça e despejou um pouco da água em seu rosto. Com as mãos ele espalhou a umidade de forma a esfriar seu rosto. Estava com uma ressaca tão forte que até cogitou a possibilidade de não sair da cama.
— Quando acordou? — perguntou o anão.
— Assim que o barulho dos anões começou, senhor — o rapaz respondeu. — Não consegui mais dormir.
— Não, claro que não. Meus irmãos em armas tem a sutileza de uma manada de taurínos em debandada — Alcairos soltou um riso rápido, mesmo sem saber o que era um tauríno.
Um pouco mais acordado, Aziel arriscou sair do lugar. Sentou-se na beirada da cama e tomou coragem por alguns segundos. Quando se sentiu confiante, se levantou e ficou em pé. O mundo girou de forma vertiginosa e, não fosse Alcairos correr em auxílio, o anão teria desabado feito um saco de aniagem no chão.
— Aguarde aqui — falou o rapaz. — Sei de uma mistura que pode ajudar com sua ressaca.
Aziel tentou protestar dizendo que não havia tempo, que os soldados já estavam partindo, mas Alcairos nem ouviu. Voltou cinco minutos depois, apressado, segurando a mesma caneca que antes trouxera para o anão beber. Agora o conteúdo era um líquido verde, com algumas folhas ainda flutuando na superficie. O primeiro gole pareceu doce a Aziel, um gosto de hortelã adocicada, mas a medida que ia tomando o resto, o gosto desapareceu, deixando o líquido insípido.
A dor de cabeça passou quase que completamente, deixando apenas um latejar incômodo do lado direito da cabeça. A tontura, a princípio, também passou. Apenas uma vertigem restou, resultante de quando o anão virava a cabeça ou revirava os olhos de uma direção a outra de maneira muito rápida.
— Vai ter que servir — disse Aziel, pondo uma mão na testa.
Algumas horas depois os anões estavam em marcha contínua, indo cada vez mais em direção ao oeste. Aziel e Alcairos vinham na retaguarda, sendo os últimos de uma enorme coluna de soldados andando em fila indiana.
O jovem rapaz puxava a mula de Aziel, que agora teria que cuidar e tratar.
— Não me entenda mal — dissera o anão mais cedo naquele dia. — Você não é meu escravo, mas não queremos dar a eles motivos para pensarem nisso. Caso contrário, considere-se morto — Alcairos consentiu com a cabeça.
Acabou que no final o plano foi bom para os dois. Para Aziel que ganhou um ajudante e para Alcairos, que pode manter a cabeça acima dos ombros por mais algum tempo. E assim aquela dupla improvável foi formada, contrariando todas as probabilidades.
— Não, claro que não. Meus irmãos em armas tem a sutileza de uma manada de taurínos em debandada — Alcairos soltou um riso rápido, mesmo sem saber o que era um tauríno.
Um pouco mais acordado, Aziel arriscou sair do lugar. Sentou-se na beirada da cama e tomou coragem por alguns segundos. Quando se sentiu confiante, se levantou e ficou em pé. O mundo girou de forma vertiginosa e, não fosse Alcairos correr em auxílio, o anão teria desabado feito um saco de aniagem no chão.
— Aguarde aqui — falou o rapaz. — Sei de uma mistura que pode ajudar com sua ressaca.
Aziel tentou protestar dizendo que não havia tempo, que os soldados já estavam partindo, mas Alcairos nem ouviu. Voltou cinco minutos depois, apressado, segurando a mesma caneca que antes trouxera para o anão beber. Agora o conteúdo era um líquido verde, com algumas folhas ainda flutuando na superficie. O primeiro gole pareceu doce a Aziel, um gosto de hortelã adocicada, mas a medida que ia tomando o resto, o gosto desapareceu, deixando o líquido insípido.
A dor de cabeça passou quase que completamente, deixando apenas um latejar incômodo do lado direito da cabeça. A tontura, a princípio, também passou. Apenas uma vertigem restou, resultante de quando o anão virava a cabeça ou revirava os olhos de uma direção a outra de maneira muito rápida.
— Vai ter que servir — disse Aziel, pondo uma mão na testa.
Algumas horas depois os anões estavam em marcha contínua, indo cada vez mais em direção ao oeste. Aziel e Alcairos vinham na retaguarda, sendo os últimos de uma enorme coluna de soldados andando em fila indiana.
O jovem rapaz puxava a mula de Aziel, que agora teria que cuidar e tratar.
— Não me entenda mal — dissera o anão mais cedo naquele dia. — Você não é meu escravo, mas não queremos dar a eles motivos para pensarem nisso. Caso contrário, considere-se morto — Alcairos consentiu com a cabeça.
Acabou que no final o plano foi bom para os dois. Para Aziel que ganhou um ajudante e para Alcairos, que pode manter a cabeça acima dos ombros por mais algum tempo. E assim aquela dupla improvável foi formada, contrariando todas as probabilidades.
— Qual é a próxima cidade? — perguntou Aziel.
— Se continuarmos seguindo essa rota? — perguntou Alcairos. O anão consentiu com a cabeça. — Bom, acredito que seja o vilarejo de Temnas. Um vilarejo adorável...
Mas Aziel havia parado de ouvir em Temnas. Ele pôs uma mão no queixo e começou a afagar a barba de forma lenta e contínua. Estava ponderando sobre qual era o verdadeiro plano dos anões, já que muito pouco fora revelado. Ao menos para ele.
E então a memória voltou a Aziel fresca, como se ele estivesse de volta ao pavilhão em frente à Cidade Central. Vários destacamentos de anões parados em frente a um palanque de madeira, onde um anão andava de um lado para o outro com as mãos juntas atrás das costas. Era Lurzan, o general mais experiente da armada anã e provavelmente o comandante mais temido de toda a região de Agemon, trajando uma armadura completa que combinava placas de metal com couro fervido. A cor do traje era marrom, símbolo de alguém sem família ou status social. Pois essa era a cor de todos os generais e figurantes do alto escalão do exército de anões: a cor de pessoas sem família, sem laços com qualquer uma das casas, fossem grandes ou pequenas. Pessoas assim eram escolhidas para tais funções pois havia um medo comum entre os anões de que se a nata do exército tivesse ligação com as famílias, qualquer tipo de alinhamento, um golpe poderia, e certamente seria, executado contra o rei.
Aquela foi a primeira coisa que intrigou Aziel: Lurzan. Alguém tão experiente como ele deveria estar na retaguarda do exército planejando os próximos passos dos soldados, bolando estratégias e escolhendo com cuidado cada próximo campo de batalha; mas não, ali estava ele em frente a um contingente extenso de soldados, dando um discurso de como iria liderar as tropas à uma vitória avassaladora sobre os humanos. E mais, dentro de algumas horas estaria liderando a vanguarda do ataque: um lugar tão perigoso que até mesmo os mais bravos soldados relutavam em se voluntariarem para estar lá. Lurzan era um trunfo importante para aquele exército; coloca-lo em risco desnecessário era um descuido muito grande.
E agora isso: Temnas.
Temnas era um vilarejo com menos de mil habitantes, pelo que sabia Aziel, situado um pouco mais a oeste da cidadezinha que eles haviam deixado para trás naquele mesmo dia. Ou seja, pouca diferença de insignificancia e alguns quilometros separavam as duas cidades uma da outra.
O que realmente perturbava Aziel era que se eles estavam indo em direção a Temnas era porque iriam atacá-la e isso não fazia sentido nenhum, pois aquele pequeno povoado era um peixe minúsculo perto de Sídross, a próxima cidade depois de Temnas. Tudo o que os anões teriam que fazer seria contornar Temnas e não chamar a atenção. Assim sendo, teriam nas mãos um ataque surpresa que poderia muito bem tomar de assalto uma cidade daquele porte. Dali, do centro-leste da Galádia, eles teriam um posto avançado que poderia muito bem ser usado para defender todas as áreas a leste de Sídross, onde os anões poderiam posicionar suas tropas sem medo de serem atacados.
Atacar Temnas seria o mesmo que acender um faról no meio da noite. Seria dar a Sídross um alerta de que eles estavam lá; seria dar uma chance ao inimigo de reunir um exército e rechaçar a investida anã.
— ...apesar de eu não ter gostado muito da comida de lá — continuou Alcairos. — Eles tem essa culinária estranha que consiste em cozinhas sapos e rãs — o rapaz fechou os olhos e estremeceu. — Não consigo me imaginar comendo tais animais. E você? — mas Aziel estava com a cabeça longe, em Agemon; na Cidade Central e suas intrincadas redes de túneis e corredores que formavam uma complicada teia de aranha subterrânea. — Algo o incomoda, Lorde Anão?
Aziel demorou alguns segundos para perceber que Alcairos estava falando com ele.
— Perdão — e chacoalhou a cabeça. — Me chame de Aziel, sim? — o bardo aquiesceu com a cabeça. — Estava pensando em... Temnas. Faça me um favor: do lado direito da mula há um alforje com um mapa saindo de dentro dele. Pegue-o para mim, sim?
Alcairos retirou um comprido pergaminho de cor amarelada do alforje e o entregou a Aziel. O anão o abriu e analisou a área onde estavam: Temnas a alguns quilômetros de distancia e mais a frente Sídross. Ao redor da trilha onde eles estavam e por vários quilômetros a sul e norte havia um pântano de proporções assustadoras. Realmente, uma faixa de terra praticamente inexpugnável a ataques vindo do oeste, se defendida da maneira correta.
— Sídross seria a última grande cidade antes do pântano? — perguntou Aziel.
— Olhe... acredito que sim — disse o rapaz, coçando a cabeça. — Por que?
O anão fechou o mapa e o entregou a Alcairos.
— Nada. Apenas uma coisa que estive pensando recentemente.
— Tudo bem, então — disse o rapaz, e depois cochichou. — Eu acho...
Mas algo perturbava Alcairos a algum tempo já. Desde que ele acordara, obviamente vivo, aquele dia de manhã. Pois era para ele estar morto, junto com aquele vilarejo; morto naquele vilarejo. Dentro de sua cabeça insegura não fazia sentido ele estar ali vivo e andando, conversando como um semelhante com um anão que fazia parte do exército que havia dizimado a população da cidade na qual ele estava hospedado por uma quinzena ou mais. A história toda, por si só, pareceria loucura a qualquer um vendo a cena, mas para Alcairos era mais que isso. O fato de ele ainda estar respirando era um enigma complexo que ele tentara resolver usando várias combinações, nenhuma realmente satisfatoria para explicar todo o ocorrido. E isso estava o corroendo por dentro.
E então numa tentativa mental de responder por que ele ainda estava vivo, ele remontou o dia anterior na memória. Houve o momento em que ele acordou, de manhã, e jogou um pouco de água no rosto. Depois disso afinou o alaúde, que fora desafinado pelo uso da noite passada na taverna, e repassou algumas músicas que iria tocar naquela noite. Houve o momento em que ele foi até sua caneca, sua antiga e querida caneca, e contou as moedas, lucros da noite passada. Doze falanges de bronze. Nada mal, mas poderia ter sido melhor. Ainda sim, seria o suficiente para pagar uma refeição quente e um pedaço de sabão, que ele esperava durar por mais de dois meses, pois planejava pegar a estrada novamente dentro de dois dias. Houve então o momento em que ele almoçou, ali na hospedaria mesmo. Nada muito importante. Então houve o momento em que ele saiu à rua, em direção de uma lojinha para comprar as coisas que ainda faltavam para que pudesse viajar. E foi aí que ele os viu se aproximando, os anões. Vinham rápidos, enfurecidos como o estouro de uma boiada ensandecida. Vinham como uma tempestade baixando sobre um milharal. E claro, o milho se dobrou facilmente perante o vento.
O instinto de sobrevivencia em Alcairos falou alto, e ele correu como nunca antes. Pensava apenas em sua vida e em seus bens materiais. Seus dedos de prata guardados em uma latinha, suas duas camisas no guarda-roupas, seu par de calçados extras ao lado da soleira da porta, sua outra calça estendida sobre a cama, seu alaúde guardado em um estojo de madeira polida. Este último item sendo seu pertence mais valioso, não apenas por seu valor material mas também pelo emocional, que era inestimável. E era nele que Alcairos pensava quando entrou correndo na hospedaria, quase derrubando uma moça que estava se aproximando da porta para saber o motivo de tal barulheira vinda da rua. Ele desviou instintivamente dela, ignorando as perguntas lançadas pela mulher e ignorando igualmente os olhares confusos das pessoas sentadas às mesas da taverna. E ele correu, e subiu escadas, e abriu portas, e finalmente chegou ao quarto. Lá ele rapidamente jogou a bolsa de viagem sobre a cama e nela pôs a calça, os sapatos, a latinha com seu dinheiro, as duas camisas. Colocou a mochila nas costas e puxou o estojo do alaúde pela alça lateral, fazendo com o recipiente do instrumento abrisse sua tampa e despejasse seu conteúdo no chão; não estava com as trancas devidamente fechadas. O rapaz sentiu como se fosse ele caindo em encontro ao piso de uma altura relativa à que o alaúde caiu. Sua cabeça começou a girar e ter vertigens, e ele sentiu enjoo. Era muito para Alcairos processar de uma vez. Ele se ajoelhou para pegar o alaúde e conseguiu fechar a mão no braço do instrumento, mas não conseguiu levantar. Ficou empacado ali pelo que pareceu uma eternidade, a cabeça dando giros vertiginosos, como se ele tivesse bebido muito na noite passada e agora estivesse enfrentando uma ressaca feia.
Os anões invadiram o quarto sem nenhuma dificuldade. Arrancaram a porta de suas dobradiças com a pura força bruta de um encontrão bem dado e acharam o jovem bardo ajoelhado no chão, olhando para eles com os olhos arregalados. Os três soldados se entreolharam, divertidos com a situação e riram.
— Ora ora, o que temos aqui?
— Um bardo, é isso mesmo — disse um segundo, fingindo coçar os olhos como se não pudesse acreditar no que estava vendo.
— Era o que precisávamos. Diversão! — exclamou o terceiro.
E assim Alcairos, entre suplicas e gritos, foi conduzido até o andar de baixo e acorrentado à uma pilastra. Um dos três captores puxou uma cadeira e se sentou em frente ao bardo, encarando-o com um sorriso de canto de boca. Os outros dois saíram porta à fora, fazer o que quer que ainda tivessem de fazer com aquela vila.
— Se continuarmos seguindo essa rota? — perguntou Alcairos. O anão consentiu com a cabeça. — Bom, acredito que seja o vilarejo de Temnas. Um vilarejo adorável...
Mas Aziel havia parado de ouvir em Temnas. Ele pôs uma mão no queixo e começou a afagar a barba de forma lenta e contínua. Estava ponderando sobre qual era o verdadeiro plano dos anões, já que muito pouco fora revelado. Ao menos para ele.
E então a memória voltou a Aziel fresca, como se ele estivesse de volta ao pavilhão em frente à Cidade Central. Vários destacamentos de anões parados em frente a um palanque de madeira, onde um anão andava de um lado para o outro com as mãos juntas atrás das costas. Era Lurzan, o general mais experiente da armada anã e provavelmente o comandante mais temido de toda a região de Agemon, trajando uma armadura completa que combinava placas de metal com couro fervido. A cor do traje era marrom, símbolo de alguém sem família ou status social. Pois essa era a cor de todos os generais e figurantes do alto escalão do exército de anões: a cor de pessoas sem família, sem laços com qualquer uma das casas, fossem grandes ou pequenas. Pessoas assim eram escolhidas para tais funções pois havia um medo comum entre os anões de que se a nata do exército tivesse ligação com as famílias, qualquer tipo de alinhamento, um golpe poderia, e certamente seria, executado contra o rei.
Aquela foi a primeira coisa que intrigou Aziel: Lurzan. Alguém tão experiente como ele deveria estar na retaguarda do exército planejando os próximos passos dos soldados, bolando estratégias e escolhendo com cuidado cada próximo campo de batalha; mas não, ali estava ele em frente a um contingente extenso de soldados, dando um discurso de como iria liderar as tropas à uma vitória avassaladora sobre os humanos. E mais, dentro de algumas horas estaria liderando a vanguarda do ataque: um lugar tão perigoso que até mesmo os mais bravos soldados relutavam em se voluntariarem para estar lá. Lurzan era um trunfo importante para aquele exército; coloca-lo em risco desnecessário era um descuido muito grande.
E agora isso: Temnas.
Temnas era um vilarejo com menos de mil habitantes, pelo que sabia Aziel, situado um pouco mais a oeste da cidadezinha que eles haviam deixado para trás naquele mesmo dia. Ou seja, pouca diferença de insignificancia e alguns quilometros separavam as duas cidades uma da outra.
O que realmente perturbava Aziel era que se eles estavam indo em direção a Temnas era porque iriam atacá-la e isso não fazia sentido nenhum, pois aquele pequeno povoado era um peixe minúsculo perto de Sídross, a próxima cidade depois de Temnas. Tudo o que os anões teriam que fazer seria contornar Temnas e não chamar a atenção. Assim sendo, teriam nas mãos um ataque surpresa que poderia muito bem tomar de assalto uma cidade daquele porte. Dali, do centro-leste da Galádia, eles teriam um posto avançado que poderia muito bem ser usado para defender todas as áreas a leste de Sídross, onde os anões poderiam posicionar suas tropas sem medo de serem atacados.
Atacar Temnas seria o mesmo que acender um faról no meio da noite. Seria dar a Sídross um alerta de que eles estavam lá; seria dar uma chance ao inimigo de reunir um exército e rechaçar a investida anã.
— ...apesar de eu não ter gostado muito da comida de lá — continuou Alcairos. — Eles tem essa culinária estranha que consiste em cozinhas sapos e rãs — o rapaz fechou os olhos e estremeceu. — Não consigo me imaginar comendo tais animais. E você? — mas Aziel estava com a cabeça longe, em Agemon; na Cidade Central e suas intrincadas redes de túneis e corredores que formavam uma complicada teia de aranha subterrânea. — Algo o incomoda, Lorde Anão?
Aziel demorou alguns segundos para perceber que Alcairos estava falando com ele.
— Perdão — e chacoalhou a cabeça. — Me chame de Aziel, sim? — o bardo aquiesceu com a cabeça. — Estava pensando em... Temnas. Faça me um favor: do lado direito da mula há um alforje com um mapa saindo de dentro dele. Pegue-o para mim, sim?
Alcairos retirou um comprido pergaminho de cor amarelada do alforje e o entregou a Aziel. O anão o abriu e analisou a área onde estavam: Temnas a alguns quilômetros de distancia e mais a frente Sídross. Ao redor da trilha onde eles estavam e por vários quilômetros a sul e norte havia um pântano de proporções assustadoras. Realmente, uma faixa de terra praticamente inexpugnável a ataques vindo do oeste, se defendida da maneira correta.
— Sídross seria a última grande cidade antes do pântano? — perguntou Aziel.
— Olhe... acredito que sim — disse o rapaz, coçando a cabeça. — Por que?
O anão fechou o mapa e o entregou a Alcairos.
— Nada. Apenas uma coisa que estive pensando recentemente.
— Tudo bem, então — disse o rapaz, e depois cochichou. — Eu acho...
Mas algo perturbava Alcairos a algum tempo já. Desde que ele acordara, obviamente vivo, aquele dia de manhã. Pois era para ele estar morto, junto com aquele vilarejo; morto naquele vilarejo. Dentro de sua cabeça insegura não fazia sentido ele estar ali vivo e andando, conversando como um semelhante com um anão que fazia parte do exército que havia dizimado a população da cidade na qual ele estava hospedado por uma quinzena ou mais. A história toda, por si só, pareceria loucura a qualquer um vendo a cena, mas para Alcairos era mais que isso. O fato de ele ainda estar respirando era um enigma complexo que ele tentara resolver usando várias combinações, nenhuma realmente satisfatoria para explicar todo o ocorrido. E isso estava o corroendo por dentro.
E então numa tentativa mental de responder por que ele ainda estava vivo, ele remontou o dia anterior na memória. Houve o momento em que ele acordou, de manhã, e jogou um pouco de água no rosto. Depois disso afinou o alaúde, que fora desafinado pelo uso da noite passada na taverna, e repassou algumas músicas que iria tocar naquela noite. Houve o momento em que ele foi até sua caneca, sua antiga e querida caneca, e contou as moedas, lucros da noite passada. Doze falanges de bronze. Nada mal, mas poderia ter sido melhor. Ainda sim, seria o suficiente para pagar uma refeição quente e um pedaço de sabão, que ele esperava durar por mais de dois meses, pois planejava pegar a estrada novamente dentro de dois dias. Houve então o momento em que ele almoçou, ali na hospedaria mesmo. Nada muito importante. Então houve o momento em que ele saiu à rua, em direção de uma lojinha para comprar as coisas que ainda faltavam para que pudesse viajar. E foi aí que ele os viu se aproximando, os anões. Vinham rápidos, enfurecidos como o estouro de uma boiada ensandecida. Vinham como uma tempestade baixando sobre um milharal. E claro, o milho se dobrou facilmente perante o vento.
O instinto de sobrevivencia em Alcairos falou alto, e ele correu como nunca antes. Pensava apenas em sua vida e em seus bens materiais. Seus dedos de prata guardados em uma latinha, suas duas camisas no guarda-roupas, seu par de calçados extras ao lado da soleira da porta, sua outra calça estendida sobre a cama, seu alaúde guardado em um estojo de madeira polida. Este último item sendo seu pertence mais valioso, não apenas por seu valor material mas também pelo emocional, que era inestimável. E era nele que Alcairos pensava quando entrou correndo na hospedaria, quase derrubando uma moça que estava se aproximando da porta para saber o motivo de tal barulheira vinda da rua. Ele desviou instintivamente dela, ignorando as perguntas lançadas pela mulher e ignorando igualmente os olhares confusos das pessoas sentadas às mesas da taverna. E ele correu, e subiu escadas, e abriu portas, e finalmente chegou ao quarto. Lá ele rapidamente jogou a bolsa de viagem sobre a cama e nela pôs a calça, os sapatos, a latinha com seu dinheiro, as duas camisas. Colocou a mochila nas costas e puxou o estojo do alaúde pela alça lateral, fazendo com o recipiente do instrumento abrisse sua tampa e despejasse seu conteúdo no chão; não estava com as trancas devidamente fechadas. O rapaz sentiu como se fosse ele caindo em encontro ao piso de uma altura relativa à que o alaúde caiu. Sua cabeça começou a girar e ter vertigens, e ele sentiu enjoo. Era muito para Alcairos processar de uma vez. Ele se ajoelhou para pegar o alaúde e conseguiu fechar a mão no braço do instrumento, mas não conseguiu levantar. Ficou empacado ali pelo que pareceu uma eternidade, a cabeça dando giros vertiginosos, como se ele tivesse bebido muito na noite passada e agora estivesse enfrentando uma ressaca feia.
Os anões invadiram o quarto sem nenhuma dificuldade. Arrancaram a porta de suas dobradiças com a pura força bruta de um encontrão bem dado e acharam o jovem bardo ajoelhado no chão, olhando para eles com os olhos arregalados. Os três soldados se entreolharam, divertidos com a situação e riram.
— Ora ora, o que temos aqui?
— Um bardo, é isso mesmo — disse um segundo, fingindo coçar os olhos como se não pudesse acreditar no que estava vendo.
— Era o que precisávamos. Diversão! — exclamou o terceiro.
E assim Alcairos, entre suplicas e gritos, foi conduzido até o andar de baixo e acorrentado à uma pilastra. Um dos três captores puxou uma cadeira e se sentou em frente ao bardo, encarando-o com um sorriso de canto de boca. Os outros dois saíram porta à fora, fazer o que quer que ainda tivessem de fazer com aquela vila.
O bardo olhou ao redor e não viu ninguém que pudesse ajuda-lo. Não havia ninguém naquele salão a não ser ele e o anão sentado logo a frente, que retirara um pequeno instrumento de uma bolsinha de couro e agora cortava as unhas pacientemente.
— P-por favor... — ele conseguiu dizer, entre soluços e lágrimas, na língua comum oriental. — Por favor...
O anão olhou para ele de forma séria.
— Olhe só, eis o seguinte — disse. — Agora que sentei, não quero levantar desta confortável cadeira apenas para amordaçá-lo. Se eu tiver de levantar daqui apenas porque está me incomodando, vou fazer melhor que isso: vou cortar um dedo do seu pé — ele falou, mostrando o cortador de unhas peculiar; era um objeto em forma de "v", grande como uma ferradura de cavalo e com as extremidades afiadas como uma navalha. Tinha uma mola no meio, de forma que ficava sempre no formato de "v". — Bardos não precisam dos dedos do pé para tocar, não é mesmo? — Alcairos, com medo, não conseguiu responder, então o anão prosseguiu. — Ótimo. Acho que temos um entendimento.
— P-por favor... — ele conseguiu dizer, entre soluços e lágrimas, na língua comum oriental. — Por favor...
O anão olhou para ele de forma séria.
— Olhe só, eis o seguinte — disse. — Agora que sentei, não quero levantar desta confortável cadeira apenas para amordaçá-lo. Se eu tiver de levantar daqui apenas porque está me incomodando, vou fazer melhor que isso: vou cortar um dedo do seu pé — ele falou, mostrando o cortador de unhas peculiar; era um objeto em forma de "v", grande como uma ferradura de cavalo e com as extremidades afiadas como uma navalha. Tinha uma mola no meio, de forma que ficava sempre no formato de "v". — Bardos não precisam dos dedos do pé para tocar, não é mesmo? — Alcairos, com medo, não conseguiu responder, então o anão prosseguiu. — Ótimo. Acho que temos um entendimento.
Ele fechou a cara e voltou a cortar as unhas.
Demorou algum tempo, mas Alcairos se acostumou com o fato de que morreria dentro de algumas horas; uma ideia que muitas pessoas não conseguiriam nunca aceitar, mas que o rapaz abraçara de bom grado. Afinal, do que tinha a se arrepender? Tivera uma vida boa, fizera o que gostava, viajara bastante e conhecera muitas coisas e pessoas, mesmo sendo um rapaz tão jovem. Então ele limpou as lágrimas, cobriu o rosto com seu melhor sorriso e tocou. Tocou a noite inteira para uma platéia de carrascos com toda a alegria que ele conseguiu reunir, pois sabia que seria a ultima vez que faria o que amava de verdade: música.
O que, então, havia acontecido para ele estar vivo? Era esse o plano dos anões ou algo dera errado?
Demorou algum tempo, mas Alcairos se acostumou com o fato de que morreria dentro de algumas horas; uma ideia que muitas pessoas não conseguiriam nunca aceitar, mas que o rapaz abraçara de bom grado. Afinal, do que tinha a se arrepender? Tivera uma vida boa, fizera o que gostava, viajara bastante e conhecera muitas coisas e pessoas, mesmo sendo um rapaz tão jovem. Então ele limpou as lágrimas, cobriu o rosto com seu melhor sorriso e tocou. Tocou a noite inteira para uma platéia de carrascos com toda a alegria que ele conseguiu reunir, pois sabia que seria a ultima vez que faria o que amava de verdade: música.
O que, então, havia acontecido para ele estar vivo? Era esse o plano dos anões ou algo dera errado?
— Posso ver um pouco de incomodo e aflição em seu rosto, bardo — disse Aziel. — Você tem perguntas? Cuspa para fora antes que minha curta curiosidade se esgote.
Alcairos foi pego desprevenido. Gaguejou algo ininteligível, pois tinha receio de perguntar abertamente aquilo ao qual queria respostas.
O anão olhou de soslaio, com o canto do olho, bufou um sonoro hunf e se calou definitivamente. Alcairos teve mais medo daquele silêncio do que da pergunta que queria fazer, por isso engoliu em seco e finalmente falou:
— Por que ainda estou vivo?
Aziel parou a marcha. Olhou para os soldados à frente e depois voltou a olhar para o jovem bardo. Já estavam no final da coluna principal, então demoraria que notassem que ficaram mais para trás ainda.
— Por que, preferia estar morto? — perguntou com desdém, falando baixo.
— Não, é claro que não — respondeu Alcairos. — Eu só não entendo porque fez o que fez, apenas isso.
— Não, é claro que não — respondeu Alcairos. — Eu só não entendo porque fez o que fez, apenas isso.
— Veja bem — disse o anão, apontando o indicador pro peito do rapaz. — Fique contente com sua vida. Apenas isso. Meus motivos são meus, e não irei compartilhá-los com você.
Alcairos baixou a cabeça e balbuciou um fraco "tudo bem". Aparentemente, iria carregar a dúvida por mais algum tempo dentro de si.