quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Capítulo 15 - O Que Sobrou

— A manhã se aproxima, Lorde Anão — pela quarta vez disse Alcairos, na soleira da porta.
    Aziel tentou abrir os olhos, mas estes pareciam feitos de chumbo e não cederam sem que antes o anão empregasse um grande esforço. Uma vez abertos, ele bocejou e se ergueu. O simples fato de mover tanto a cabeça lhe causou tanta dor e mal estar que ele teve que congelar todos os movimentos do corpo por um instante.
— Busque um copo de água, sim? — pediu. — Minha boca está seca e minha cabeça em frangalhos.
    Alcairos deu dois passos para trás e sumiu. Aziel cobriu o rosto com as mãos e, lentamente, voltou a repousar sua cabeça naquele travesseiro de lã tão momentaneamente confortável. Ele tentou lembrar da noite passada, mas apenas borrões e imagens desconexas vieram a sua mente. Então ele lembrou das pessoas mortas e principalmente das crianças, e uma lágrima mais uma vez escorreu e se perdeu em sua barba.
— Oh, deus — ele gemeu baixinho, cocando os olhos e os deixando mais vermelhos.
    Ele fungou e em seguida soltou um longo suspiro que pareceu se estender por toda aquela manhã barulhenta. Respirou de forma lenta, ritmada, e abriu os olhos. Encarou o teto de madeira daquela casa, tentando imaginar a forma como viera parar ali e por que aquele humano ainda estava vivo.
    Depois de um tempo Alcairos voltou. Trazia uma caneca de madeira com água até a borda.
— Não posso garantir a qualidade da água — falou. — A chuva fez o poço transbordar noite passada, então...
— Não se preocupe com isso — cortou Aziel. — É água, isso que importa.
    Ele tomou um bom gole, deixando a caneca pela metade. Sentiu o líquido fresco saciando sua sede e limpando sua boca de forma que o gosto rançoso que estava em sua língua desapareceu completamente. Aziel então ergueu a caneca um pouco acima da linha da cabeça e despejou um pouco da água em seu rosto. Com as mãos ele espalhou a umidade de forma a esfriar seu rosto. Estava com uma ressaca tão forte que até cogitou a possibilidade de não sair da cama.
— Quando acordou? — perguntou o anão.
— Assim que o barulho dos anões começou, senhor — o rapaz respondeu. — Não consegui mais dormir.
— Não, claro que não. Meus irmãos em armas tem a sutileza de uma manada de taurínos em debandada — Alcairos soltou um riso rápido, mesmo sem saber o que era um tauríno.
   Um pouco mais acordado, Aziel arriscou sair do lugar. Sentou-se na beirada da cama e tomou coragem por alguns segundos. Quando se sentiu confiante, se levantou e ficou em pé. O mundo girou de forma vertiginosa e, não fosse Alcairos correr em auxílio, o anão teria desabado feito um saco de aniagem no chão.
— Aguarde aqui — falou o rapaz. — Sei de uma mistura que pode ajudar com sua ressaca.
    Aziel tentou protestar dizendo que não havia tempo, que os soldados já estavam partindo, mas Alcairos nem ouviu. Voltou cinco minutos depois, apressado, segurando a mesma caneca que antes trouxera para o anão beber. Agora o conteúdo era um líquido verde, com algumas folhas ainda flutuando na superficie. O primeiro gole pareceu doce a Aziel, um gosto de hortelã adocicada, mas a medida que ia tomando o resto, o gosto desapareceu, deixando o líquido insípido.
    A dor de cabeça passou quase que completamente, deixando apenas um latejar incômodo do lado direito da cabeça. A tontura, a princípio, também passou. Apenas uma vertigem restou, resultante de quando o anão virava a cabeça ou revirava os olhos de uma direção a outra de maneira muito rápida.
— Vai ter que servir — disse Aziel, pondo uma mão na testa.
   
  Algumas horas depois os anões estavam em marcha contínua, indo cada vez mais em direção ao oeste. Aziel e Alcairos vinham na retaguarda, sendo os últimos de uma enorme coluna de soldados andando em fila indiana.
   O jovem rapaz puxava a mula de Aziel, que agora teria que cuidar e tratar.
— Não me entenda mal — dissera o anão mais cedo naquele dia. — Você não é meu escravo, mas não queremos dar a eles motivos para pensarem nisso. Caso contrário, considere-se morto — Alcairos consentiu com a cabeça.
    Acabou que no final o plano foi bom para os dois. Para Aziel que ganhou um ajudante e para Alcairos, que pode manter a cabeça acima dos ombros por mais algum tempo. E assim aquela dupla improvável foi formada, contrariando todas as probabilidades.
— Qual é a próxima cidade? — perguntou Aziel.
— Se continuarmos seguindo essa rota? — perguntou Alcairos. O anão consentiu com a cabeça. — Bom, acredito que seja o vilarejo de Temnas. Um vilarejo adorável...
    Mas Aziel havia parado de ouvir em Temnas. Ele pôs uma mão no queixo e começou a afagar a barba de forma lenta e contínua. Estava ponderando sobre qual era o verdadeiro plano dos anões, já que muito pouco fora revelado. Ao menos para ele.
   E então a memória voltou a Aziel fresca, como se ele estivesse de volta ao pavilhão em frente à Cidade Central. Vários destacamentos de anões parados em frente a um palanque de madeira, onde um anão andava de um lado para o outro com as mãos juntas atrás das costas. Era Lurzan, o general mais experiente da armada anã e provavelmente o comandante mais temido de toda a região de Agemon, trajando uma armadura completa que combinava placas de metal com couro fervido. A cor do traje era marrom, símbolo de alguém sem família ou status social. Pois essa era a cor de todos os generais e figurantes do alto escalão do exército de anões: a cor de pessoas sem família, sem laços com qualquer uma das casas, fossem grandes ou pequenas. Pessoas assim eram escolhidas para tais funções pois havia um medo comum entre os anões de que se a nata do exército tivesse ligação com as famílias, qualquer tipo de alinhamento, um golpe poderia, e certamente seria, executado contra o rei.
     Aquela foi a primeira coisa que intrigou Aziel: Lurzan. Alguém tão experiente como ele deveria estar na retaguarda do exército planejando os próximos passos dos soldados, bolando estratégias e escolhendo com cuidado cada próximo campo de batalha; mas não, ali estava ele em frente a um contingente extenso de soldados, dando um discurso de como iria liderar as tropas à uma vitória avassaladora sobre os humanos. E mais, dentro de algumas horas estaria liderando a vanguarda do ataque: um lugar tão perigoso que até mesmo os mais bravos soldados relutavam em se voluntariarem para estar lá. Lurzan era um trunfo importante para aquele exército; coloca-lo em risco desnecessário era um descuido muito grande.
   E agora isso: Temnas.
   Temnas era um vilarejo com menos de mil habitantes, pelo que sabia Aziel, situado um pouco mais a oeste da cidadezinha que eles haviam deixado para trás naquele mesmo dia. Ou seja, pouca diferença de insignificancia e alguns quilometros separavam as duas cidades uma da outra.
   O que realmente perturbava Aziel era que se eles estavam indo em direção a Temnas era porque iriam atacá-la e isso não fazia sentido nenhum, pois aquele pequeno povoado era um peixe minúsculo perto de Sídross, a próxima cidade depois de Temnas. Tudo o que os anões teriam que fazer seria contornar Temnas e não chamar a atenção. Assim sendo, teriam nas mãos um ataque surpresa que poderia muito bem tomar de assalto uma cidade daquele porte. Dali, do centro-leste da Galádia, eles teriam um posto avançado que poderia muito bem ser usado para defender todas as áreas a leste de Sídross, onde os anões poderiam posicionar suas tropas sem medo de serem atacados.
   Atacar Temnas seria o mesmo que acender um faról no meio da noite. Seria dar a Sídross um alerta de que eles estavam lá; seria dar uma chance ao inimigo de reunir um exército e rechaçar a investida anã.
— ...apesar de eu não ter gostado muito da comida de lá — continuou Alcairos. — Eles tem essa culinária estranha que consiste em cozinhas sapos e rãs — o rapaz fechou os olhos e estremeceu. — Não consigo me imaginar comendo tais animais. E você? — mas Aziel estava com a cabeça longe, em Agemon; na Cidade Central e suas intrincadas redes de túneis e corredores que formavam uma complicada teia de aranha subterrânea. — Algo o incomoda, Lorde Anão?
    Aziel demorou alguns segundos para perceber que Alcairos estava falando com ele.
— Perdão — e chacoalhou a cabeça. — Me chame de Aziel, sim? — o bardo aquiesceu com a cabeça. — Estava pensando em... Temnas. Faça me um favor: do lado direito da mula há um alforje com um mapa saindo de dentro dele. Pegue-o para mim, sim?
   Alcairos retirou um comprido pergaminho de cor amarelada do alforje e o entregou a Aziel. O anão o abriu e analisou a área onde estavam: Temnas a alguns quilômetros de distancia e mais a frente Sídross. Ao redor da trilha onde eles estavam e por vários quilômetros a sul e norte havia um pântano de proporções assustadoras. Realmente, uma faixa de terra praticamente inexpugnável a ataques vindo do oeste, se defendida da maneira correta.
— Sídross seria a última grande cidade antes do pântano? — perguntou Aziel.
— Olhe... acredito que sim — disse o rapaz, coçando a cabeça. — Por que?
   O anão fechou o mapa e o entregou a Alcairos.
— Nada. Apenas uma coisa que estive pensando recentemente.
— Tudo bem, então — disse o rapaz, e depois cochichou. — Eu acho...
      Mas algo perturbava Alcairos a algum tempo já. Desde que ele acordara, obviamente vivo, aquele dia de manhã. Pois era para ele estar morto, junto com aquele vilarejo; morto naquele vilarejo. Dentro de sua cabeça insegura não fazia sentido ele estar ali vivo e andando, conversando como um semelhante com um anão que fazia parte do exército que havia dizimado a população da cidade na qual ele estava hospedado por uma quinzena ou mais. A história toda, por si só, pareceria loucura a qualquer um vendo a cena, mas para Alcairos era mais que isso. O fato de ele ainda estar respirando era um enigma complexo que ele tentara resolver usando várias combinações, nenhuma realmente satisfatoria para explicar todo o ocorrido. E isso estava o corroendo por dentro.
     E então numa tentativa mental de responder por que ele ainda estava vivo, ele remontou o dia anterior na memória. Houve o momento em que ele acordou, de manhã, e jogou um pouco de água no rosto. Depois disso afinou o alaúde, que fora desafinado pelo uso da noite passada na taverna, e repassou algumas músicas que iria tocar naquela noite. Houve o momento em que ele foi até sua caneca, sua antiga e querida caneca, e contou as moedas, lucros da noite passada. Doze falanges de bronze. Nada mal, mas poderia ter sido melhor. Ainda sim, seria o suficiente para pagar uma refeição quente e um pedaço de sabão, que ele esperava durar por mais de dois meses, pois planejava pegar a estrada novamente dentro de dois dias. Houve então o momento em que ele almoçou, ali na hospedaria mesmo. Nada muito importante. Então houve o momento em que ele saiu à rua, em direção de uma lojinha para comprar as coisas que ainda faltavam para que pudesse viajar. E foi aí que ele os viu se aproximando, os anões. Vinham rápidos, enfurecidos como o estouro de uma boiada ensandecida. Vinham como uma tempestade baixando sobre um milharal. E claro, o milho se dobrou facilmente perante o vento.
    O instinto de sobrevivencia em Alcairos falou alto, e ele correu como nunca antes. Pensava apenas em sua vida e em seus bens materiais. Seus dedos de prata guardados em uma latinha, suas duas camisas no guarda-roupas, seu par de calçados extras ao lado da soleira da porta, sua outra calça estendida sobre a cama, seu alaúde guardado em um estojo de madeira polida. Este último item sendo seu pertence mais valioso, não apenas por seu valor material mas também pelo emocional, que era inestimável. E era nele que Alcairos pensava quando entrou correndo na hospedaria, quase derrubando uma moça que estava se aproximando da porta para saber o motivo de tal barulheira vinda da rua. Ele desviou instintivamente dela, ignorando as perguntas lançadas pela mulher e ignorando igualmente os olhares confusos das pessoas sentadas às mesas da taverna. E ele correu, e subiu escadas, e abriu portas, e finalmente chegou ao quarto. Lá ele rapidamente jogou a bolsa de viagem sobre a cama e nela pôs a calça, os sapatos, a latinha com seu dinheiro, as duas camisas. Colocou a mochila nas costas e puxou o estojo do alaúde pela alça lateral, fazendo com o recipiente do instrumento abrisse sua tampa e despejasse seu conteúdo no chão; não estava com as trancas devidamente fechadas. O rapaz sentiu como se fosse ele caindo em encontro ao piso de uma altura relativa à que o alaúde caiu. Sua cabeça começou a girar e ter vertigens, e ele sentiu enjoo. Era muito para Alcairos processar de uma vez. Ele se ajoelhou para pegar o alaúde e conseguiu fechar a mão no braço do instrumento, mas não conseguiu levantar. Ficou empacado ali pelo que pareceu uma eternidade, a cabeça dando giros vertiginosos, como se ele tivesse bebido muito na noite passada e agora estivesse enfrentando uma ressaca feia.
    Os anões invadiram o quarto sem nenhuma dificuldade. Arrancaram a porta de suas dobradiças com a pura força bruta de um encontrão bem dado e acharam o jovem bardo ajoelhado no chão, olhando para eles com os olhos arregalados. Os três soldados se entreolharam, divertidos com a situação e riram.
— Ora ora, o que temos aqui?
— Um bardo, é isso mesmo — disse um segundo, fingindo coçar os olhos como se não pudesse acreditar no que estava vendo.
— Era o que precisávamos. Diversão! — exclamou o terceiro.
     E assim Alcairos, entre suplicas e gritos, foi conduzido até o andar de baixo e acorrentado à uma pilastra. Um dos três captores puxou uma cadeira e se sentou em frente ao bardo, encarando-o com um sorriso de canto de boca. Os outros dois saíram porta à fora, fazer o que quer que ainda tivessem de fazer com aquela vila.
    O bardo olhou ao redor e não viu ninguém que pudesse ajuda-lo. Não havia ninguém naquele salão a não ser ele e o anão sentado logo a frente, que retirara um pequeno instrumento de uma bolsinha de couro e agora cortava as unhas pacientemente.
— P-por favor... — ele conseguiu dizer, entre soluços e lágrimas, na língua comum oriental. — Por favor...
    O anão olhou para ele de forma séria.
— Olhe só, eis o seguinte — disse. — Agora que sentei, não quero levantar desta confortável cadeira apenas para amordaçá-lo. Se eu tiver de levantar daqui apenas porque está me incomodando, vou fazer melhor que isso: vou cortar um dedo do seu pé — ele falou, mostrando o cortador de unhas peculiar; era um objeto em forma de "v", grande como uma ferradura de cavalo e com as extremidades afiadas como uma navalha. Tinha uma mola no meio, de forma que ficava sempre no formato de "v". — Bardos não precisam dos dedos do pé para tocar, não é mesmo? — Alcairos, com medo, não conseguiu responder, então o anão prosseguiu. — Ótimo. Acho que temos um entendimento.
   Ele fechou a cara e voltou a cortar as unhas.
   Demorou algum tempo, mas Alcairos se acostumou com o fato de que morreria dentro de algumas horas; uma ideia que muitas pessoas não conseguiriam nunca aceitar, mas que o rapaz abraçara de bom grado. Afinal, do que tinha a se arrepender? Tivera uma vida boa, fizera o que gostava, viajara bastante e conhecera muitas coisas e pessoas, mesmo sendo um rapaz tão jovem. Então ele limpou as lágrimas, cobriu o rosto com seu melhor sorriso e tocou. Tocou a noite inteira para uma platéia de carrascos com toda a alegria que ele conseguiu reunir, pois sabia que seria a ultima vez que faria o que amava de verdade: música.
    O que, então, havia acontecido para ele estar vivo? Era esse o plano dos anões ou algo dera errado?

— Posso ver um pouco de incomodo e aflição em seu rosto, bardo — disse Aziel. — Você tem perguntas? Cuspa para fora antes que minha curta curiosidade se esgote.
  Alcairos foi pego desprevenido. Gaguejou algo ininteligível, pois tinha receio de perguntar abertamente aquilo ao qual queria respostas.
  O anão olhou de soslaio, com o canto do olho, bufou um sonoro hunf e se calou definitivamente. Alcairos teve mais medo daquele silêncio do que da pergunta que queria fazer, por isso engoliu em seco e finalmente falou:
— Por que ainda estou vivo?
  Aziel parou a marcha. Olhou para os soldados à frente e depois voltou a olhar para o jovem bardo. Já estavam no final da coluna principal, então demoraria que notassem que ficaram mais para trás ainda.
— Por que, preferia estar morto? — perguntou com desdém, falando baixo.
— Não, é claro que não — respondeu Alcairos. — Eu só não entendo porque fez o que fez, apenas isso.
— Veja bem — disse o anão, apontando o indicador pro peito do rapaz. — Fique contente com sua vida. Apenas isso. Meus motivos são meus, e não irei compartilhá-los com você.

   Alcairos baixou a cabeça e balbuciou um fraco "tudo bem". Aparentemente, iria carregar a dúvida por mais algum tempo dentro de si.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Capítulo 14 - Na Montanha do Dragão Pt. 2

O salão estava cheio de gente. Cheio de sacerdotisas que me olharam de cara feia enquanto eu andava para me sentar ao lado de Lianna, a única que eu conhecia naquela sala. Me sentei ao lado dela e ela me empurrou um prato com comida, o qual eu comi de boa vontade. Mesmo saciando minha fome me senti desconfortável, deslocado. Era claro que todas aquelas mulheres estavam incomodadas comigo, como se minha mera presença sujasse a pureza do santuário. Elas eram hostis comigo, grosseiras e rudes, mas eu não me importava. Elas podiam ser o que quisessem que ainda sim não seria da minha conta, pois dali a algum tempo eu sairia daquele buraco e iria direto para casa. Eu tinha certeza. Apenas iria fazer o que Zettus mandasse e então a esféra logo sairia de mim e eu a entregaria para alguém. Então outra pessoa me levaria de volta para casa. De volta para minhas obrigações e minha vida, onde eu teria que encontrar um jeito de contar à família de Jonas que ele estava morto. Eu não iria conseguir. Simplesmente não iria. Não poderia ser feito.
   No dia seguinte acordei com alguém batendo à porta de forma insistente. Eu, claro, estava um caco; cansado e com cara de sono, fui até o espelho para ver o desastre estampado nele. Cabelos e barba desgrenhados, olheiras, marcas do travesseiro no meu rosto. Mas estava pouco me importando com a aparência, pois nada daquele santuário fazia real diferença pra mim. Vesti as roupas da noite anterior e abri a porta apenas para que meu mundo girasse e ficasse preto.
— Seu treino começou a mais de vinte minutos — disse a voz. Eu, estatelado no chão, pus a mão na cabeça dolorida e senti um alívio quando não senti sangue nela.
— Está louca?! — gritei. — Que tipo de idiotice é essa?
  Mal tive tempo de terminar a frase e mais uma vez aquele bastão me acertou. Dessa vez na barriga. Se algo estivesse lá, eu teria provavelmente vomitado tudo.
— Meça as palavras com cuidado, garoto — a mulher disse. Outra loira, como Lillien, mas essa com feições visivelmente mais leves, mais suaves. — Sou sua mentora de agora em diante. E não tolero desrespeito.
    Tive de me conter para não jorrar uma torrente de obscenidades em direção daquela mulher. O que, claro, não garantiria mais do que hematomas pelo meu corpo.
— Eu não concordei com nada disso — falei, sério, encarando-a.
— Não importa. Não tenho interesse em saber sobre o que você concordou ou não — ela disse, e se virou para sair. Deu dois passos e então se virou de novo quando percebeu que eu não havia me movido nem um centímetro sequer. — E posso ficar o dia inteiro te batendo até que você decida vir de boa vontade. A escolha é sua — e para dar ênfase, ela apontou o bastão para mim.
   Grunhi alguma coisa. Estava furioso demais para pensar direito. Então me levantei do chão e bati a poeira das minhas vestes. Cerrei os punhos de forma a deixar os nós dos dedos brancos. Naquele momento, se ela não estivesse armada eu provavelmente teria partido para cima daquela mulher, o que seria uma atitude pouco cavalheiresca de minha parte; não que eu me importasse ou pensasse a respeito disso, pois minha mente estava cega de uma raiva vermelha.
Ela pareceu satisfeita com minha nova disposição, mesmo que baseada no medo de apanhar novamente, e seguiu caminho. Deixei ela tomar a dianteira e fui vagarosamente atrás, com receio de ser acertado de novo.
  Seguimos por corredores e salões igualmente vazios por algum tempo, até que um corredor final culminou numa abertura em arco, que conduzia a um pequeno platô a milhares de metros do nível do mar. Ali haviam varias sacerdotisas indo de um lado para o outro ou apenas sentadas, meditando.
— É aqui onde vamos treinar pelas próximas semanas — ela disse. Grunhi feito um animal em concordância, pois a raiva ainda estava absurda em mim.
  Com tanto barulho, algumas sacerdotisas abriram os olhos e nos observaram, curiosas, enquanto andávamos em direção à uma grande rocha achatada.
— Dizem que o próprio Antrowè achatou esta pedra com seu martelo energizado durante a batalha das colinas de aço — eu não fazia ideia do que ela estava falando. — Mas é claro que você não faz ideia do que eu estou falando — óbvio.
— Eu quero saber o que Zettus prometeu que me contariam.
— E eu não sou Lillien, como pode ver. Se Zettus disse que Lillien iria falar com você, então ela irá.
  Fiquei em silêncio.
— Falando nela...
   E lá vinha a loira se aproximando a passos largos, despreocupada. Com o sol batendo diretamente sobre seus cabelos, Lillien era uma visão fulgurante, difícil de ser encarada. Uma rainha banhada em ouro, de feições agressivas, quase lupinas.
— Irmã — ela disse, fazendo uma reverência. Rillei, como fui saber seu nome mais tarde, também se curvou. Um pouco mais, eu diria. Talvez por Lillien ter um posto mais elevado, mesmo entre as sacerdotisas. — E Dave. — ela abaixou levemente a cabeça e eu fiz o mesmo. — Me acompanhe por um momento, sim? Fique aqui, Rillei, preciso falar com ele.
    Fiquei um pouco mais aliviado pois, mesmo Lillien parecendo mais agressiva, ela ainda não havia me agredido desde que eu chegara no santuário. Andamos em direção à uma gigantesca floresta de pinheiros, com exemplares que poderiam chegar fácil à marca de trinta metros de altura. Lillien caminhava tranquilamente, mas sua expressão sugeria um conflito interno. Ela mordia os lábios, revirava os olhos, repousava a mão no queixo, como se confusa, e constantemente mexia no cabelo. Parei, sério, e cruzei os braços. Ela só foi perceber que fiquei para trás algumas árvores depois.
— Será que aqui está bom? Ninguém irá nos escutar? — ela olhava para os lados, falando de forma rápida e continua — Talvez a gente devesse andar mais...
— Não, não vamos — respondi. — Eu quero saber o que você tem a me contar, e não me importo se alguém ouça ou não.
— Você não entende, não é? — ela falou, agora séria. Estava com a raiva gélida que eu havia presenciado no outro dia. — Nada disso é tão simples quanto você pensa. Você, sua história, a esfera, Barath. Nada é tão simples! Se alguém mal intencionado souber da sua existência, considere-se morto. Considere nosso mundo destruido. Eles sabem da esféra, mas não sabem de você. Não sabem quem você é.
— E quem eu sou?! — gritei a plenos pulmões. Toda essa história e esse drama já haviam dado o que tinham que dar. — Olhe — falei. Estava mais calmo, mas meu rosto provavelmente ainda estava vermelho de raiva. — Eu só quero voltar para casa. Eu só quero calma. E quero meu amigo vivo. Pouco me importo com quem sou ou deixo de ser, mas se para sair deste lugar eu precise saber destas coisas, então eu quero saber. E quero saber agora. Não quero perder mais tempo com todo esse drama.
   Lillien ficou sem reação por alguns segundos. Parecia atordoada. Então ela deu um passo a frente, mais firme do que alguns segundos atrás, apertou meus ombros com as mãos e, com os lábios perto do meu ouvido direito, sussurrou em meu ouvido:
— É uma pena o futuro de todos os universos estar em suas mãos — sua voz me dava calafrios cada vez que ela falava. — Você não passa de um garoto mimado, egocêntrico e narcisista. Conheço seu tipo e eu o desprezo. Não fosse as circumstâncias atuais, eu o deixaria ao pé da montanha, à mercê da própria sorte.
   Então ela recuou. Conservava no semblante aquela expressão séria, inflexível. Lillien se sentou em uma rocha e fez um gesto para que eu arrumasse algum lugar para sentar. Me sentei logo a frente dela, com as pernas cruzadas, em cima do chão da floresta, que era composto de agulhas de pinheiro e galhos secos.
— Tudo bem — ela começou. — Para que você entenda tudo da forma correta, tenho que começar do começo.
    "E é realmente o começo. De tudo. Deste mundo.
      E começou a milhões de anos atrás, quando os deuses decidiram criar esta rocha, neste canto vazio do universo,  e a ela dar vida.
     E quando digo vazio, realmente não havia nada. Imagine um lugar onde não há luz, trevas ou cores. Você não pode tocar nada, pois nada existe. Mesmo com os olhos fechados, você não veria a escuridão, pois ela não existiria. Impossível tentar imaginar, não é? Pois era assim que era este mundo. Um vazio.      
  Então os dragões foram criados, e de seus sopros eles criaram tudo que há em nosso mundo. Água, fogo, terra, vento. Plantas, animais, seres humanos. Tudo em perfeita harmonia.
  Mas tudo muda, e em nosso mundo essa lei não foi diferente.
  Aconteceu na Aurora Dourada, uma época longínqua, quando um dragão Branco se apaixonou por uma mulher humana. Uma jovem camponesa envolta em mistério até mesmo para aqueles que conviviam com ela.
  O fato é que, determinado a conquistá-la, o dragão assumiu uma forma humana. Então da barriga da camponesa, um bebê nasceu. Meio humano, meio dragão. Foi então que surgiram os Cavaleiros Dragão: seres mágicos que com o tempo passaram a ser temidos pelos humanos.
   Com o passar das eras os Cavaleiros Dragão, por poderem assumir a forma natural dos dragões, misturaram seu sangue de dragão branco com outros. Vermelhos, azuis, amarelos. E cada um que acasalava com um dragão deveria jurar sua lealdade à apenas uma casa de dragões, sendo elas as casas do fogo, gelo, trovão, terra e até mesmo luz."
 
  Ela fez uma pausa na narrativa e aproveitei a deixa:
— Quanta besteira — falei, descrente. Fui repreendido com um olhar gélido. — Tudo bem, e o que eu tenho a ver com essa história toda?
— Vou chegar a isto, acalme-se.

"Então foram criadas as casas como a dos Farlane, os temidos Cavaleiros Dragão do fogo; essas casas, compostas apenas por Cavaleiros Dragão, tinham lealdade somente a um tipo de dragão, e isso deu brecha a guerras duras e penosas entre as diferentes cores de dragão."

— Hoje temos poucos dragões, pelo menos aqui em Galádia. Alguns vermelhos ao leste, nas forjas de Fóslan, alguns aqui mesmo em Éveras. Mas as casas, aquelas que lutaram a guerra dos dragões, foram totalmente dizimadas e hoje não há mais nenhuma. Há apenas alguns sobreviventes esparsos que foram mantidos vivos por interesses daqueles que desferiram o ataque final no coração dos Cavaleiros Dragão, tanto tempo atrás.
— Ainda não entendo por que está me contando isso.
— Não é óbvio? Você é um Cavaleiro Dragão, garoto!
  Fiquei tonto por um momento. Tantas coisas, tantas lembranças e fatos do passado, enigmas e mistérios sem explicação de coisas que haviam acontecido comigo no passado agora faziam sentido. Claro, se eu resolvesse acreditar naquela mulher.
— Então quer dizer que posso soltar fogo pela boca e criar asinhas para voar?! — falei, sarcástico. — Você debocha de mim me contando essas histórias de carochinha, Lillien!
   Ela por um momento pareceu inclinada a me dar uma bofetada no rosto. Ela passou por um momento de raiva mas logo recuperou a compostura. Durona. Um auto-controle tão firme que passei a admirá-la apenas por seu sangue frio.
— Eu não gastaria meu tempo para convencer um garoto de que ele é algo que não é — ela falou, soltando um risinho no final da frase. — Isso seria estupidez.
   Vi a firmeza em suas palavras, e percebi que Lillien tinha um ponto.
— Meu ceticismo não é duvidar que sou algo ou deixo de ser — respondi. — É duvidar da existência de uma coisa... mística tal qual um Cavaleiro Dragão. Um homem que se transforma em um dragão? Acho um pouco absurdo.
— Absurdo ou não, você o é — ela disse. — E embora, talvez, eu possa não provar para você aqui e agora, pois você precisa de treino para desenvolver suas habilidades, gostaria de lhe mostrar isso — então ela puxou uma pequena pedra lapidada em forma octogonal. A bela gema tinha uma cor azul forte nas bordas que ia desvanecendo progressivamente à medida que se aproximava do centro, de forma que esta região final era transparente. — Segure.
  Ela estendeu a mão e me ofereceu a jóia. Tive receio de que algo acontecesse caso eu tocasse aquele objeto, mas a princípio nada ocorreu. Senti que era gelado como um pingente de gelo, mas nada além disso. Então a aproximei do rosto para olhar com mais cuidado, e foi então que algo realmente curioso aconteceu: a jóia lentamente mudou de cor. Passou de um azul forte para um roxo, e depois para o vermelho lívido.
— Vê? Ela tinha a cor azul pois estava comigo, uma sacerdotisa do gelo, mas agora que está em suas mãos ela assume o tom do portador. Vermelho, um filho do fogo.
— Isso não prova nada, sabe — falei. — Aposto que até um charlatão poderia reproduzir um truque barato como esse.
— Esperava que dissesse algo assim — ela respondeu. — Como eu disse: não posso provar nada agora, mas quando você estiver...
   E então algo mais aconteceu, algo que deixou Lillien muda de pavor. Seus olhos arregalados pareciam tremer nas órbitas, enquanto ela fitava incrédula a pedra em minha mão.
— O que foi?
   Percebi então que a gema mudara de novo sua coloração. Agora voltava ao azul característico de quando Lillien a entregara a mim. Prestei atenção naquilo por mais um momento e vi que a jóia voltou ao vermelho. E então, como se indecisa sobre qual cor exibir, ela voltou ao azul. Manteve esse esquema de troca por mais algumas vezes antes de decidir que a metade direita ficaria azul e a esquerda, vermelho.
— O que significa isso? — perguntei. Estava pouco ligando para o que poderia ser, mas para Lillien parecia algo de outro mundo. — Lillien!
  Com um pouco mais de volume na voz consegui chamar a sacerdotisa de volta a realidade. Ela gaguejou por alguns instantes, tentando procurar as palavras certas.
— O objeto em sua mão é um artefato mágico — ela por fim disse. — Criado pelos magos de Rardras para identificar Cavaleiros Dragão durante a grande revolta humana, há mais ou menos duzentos anos atrás. O fato é que ela não só aponta se a pessoa é ou não dragão, mas também é capaz de indicar a descendência dela — ela explicou. — No seu caso eu não sabia a qual casa você pertencia, mas agora não tenho certeza se é um filho do fogo ou uma criança do gelo.
— Talvez eu seja um humano comum de dezenove anos com uma pedra octogonal louca nas mãos. Aposto que um cientista em meu mundo poderia explicar esta pedra através da química.
   Ela abanou as mãos de forma impaciente, cansada com meus sarcasmos.
— Como queira, como queira — ela disse, enquanto abanava a cabeça e virava os olhos na melhor caricatura de "por que tenho que aturar isso?". — Isso é algo impossível — ela continuou. — Como eu disse, os Cavaleiros Dragão juram sua lealdade a apenas uma casa, e só se reproduzem entre si, mantendo a pureza de seu sangue. A ideia de um Cavaleiro Dragão do fogo acasalar com um Dragão Azul ou até mesmo com uma sacerdotisa do gelo é inimaginavel — ela parecia estar tentando mais convencer a si mesma do que a mim. — O mesmo vale para um Cavaleiro Dragão do gelo com um Dragão Vermelho ou uma sacerdotisa do fogo. Mas mesmo assim... essas pedras... elas nunca falharam, nunca erraram. O que é você, Dave?!
— Um louco que talvez tenha batido a cabeça e que agora está em coma numa cama de hospital, tendo alucinações sobre montanhas, dragões e sacerdotisas — disse, olhando para as agulhas de pinheiro e os galhos abaixo de mim. — Faria muito mais sentido.
— Sim. Muito mais que um cristal prismático defeituoso, admito — ela disse. — Mas não, infelizmente para você tudo isso é real. Eu, a montanha e os dragões.
    Ela fez uma pausa. Se levantou da pedra onde estava sentada e tirou o tal cristal de minhas mãos. Lillien o guardou em um bolso lateral de sua blusa.
— Espero que tome algum tempo para se convencer disto. De que tudo aqui é a vida real — ela disse. — Enquanto isso, vou informar Zettus de sua pequena surpresa e ver o que faremos. Vá — ela disse, abanando as mãos. — Você tem um treino com Rillei agora.
   Levantei com um pouco de dificuldade, pois minhas pernas estavam dormentes, e segui em direção da saída daquela floresta. De longe avistei Rillei e seus traços leves, suaves, contrastantes com sua personalidade agressiva. Ela estava de braços cruzados, impaciente com minha demora. O cajado repousava logo ao lado, no chão, o que me deixou mais calmo, de certa forma.
— E então? — ela indagou. — Terra? Gelo? Fogo? — na última pergunta ela arrastou a palavra fogo, torcendo tanto a boca com uma voz de deboche quanto o nariz numa perfeita cara de nojo.
— Gelo e fogo — falei, divertido. Naquele momento percebi que quando tivesse a oportunidade, fosse por atos ou palavras, eu a incomodaria.
    Ela travou diante de tais palavras. Olhou para mim da cabeça aos pés.
— Cuidado com a língua, garoto! Não sou mulher de tolerar deboche!
   Apesar das ameaças, a cena se tornava quase cômica pela falta de atributos agressivos em Rillei. Ela ficava, de certa forma, fofa quando fechava o semblante e torcia a boca com raiva. As bochechas, de certa forma volumosas, pareciam ganhar um tamanho maior quando ela cerrava os dentes com raiva. Minha vontade, que certamente me renderia um olho roxo e alguns ossos quebrados, era de apertar aquelas bochechas rosadas e volumosas, como se faz com crianças pequenas. Me abstive de tal desejo, claro, mas não pude controlar um pequeno sorriso de canto de boca.
— Não estou brincando — respondi. — Aparentemente o seu tal cristal prismático não conseguiu escolher entre vermelho e azul, e ficou metade-metade. O que isso significa, eu não sei — falei, dando de ombros.
— Mas isso não seria possível...! — ela começou.
— Eu sei, eu sei — cortei. — Os Cavaleiros Dragão juram fidelidade a apenas uma cor e blá blá blá, nada que eu não tenha ouvido nos últimos minutos — falei.
    Ela não pareceu muito feliz com minha interrupção. 
O fato é que no caminho de volta, na floresta, pensei a respeito do que Lillien havia me dito: "Espero que tome algum tempo para se convencer disto. De que tudo aqui é a vida real". Minha cabeça dava giros e giros procurando explicações, mas nada parecia tomar um rumo certo. Perguntas que faziam círculos e voltavam a estaca zero minavam minha mente como as folhas de uma árvore preenchendo um chão de outono. Então me livrei, de alguma forma, daquelas perguntas e pensei comigo mesmo que se aquilo fosse mesmo a vida real e eu estivesse correndo perigo, então era melhor eu mergulhar de cabeça nessa história toda e desempenhar meu papel. Afinal de contas, eu tinha que sair dali. Tinha que ver minha mãe. Tinha que reaver minha vida e, acima de tudo, honrar Jonas saindo daquele lugar. Não podia perder as esperanças nem por um segundo e não podia desistir a cada obstáculo que aparecia no caminho. Isso tudo eu precisava fazer por ele, e eu o faria. De alguma forma.
— E então — falei, batendo as palmas das mãos como quem se aquece para um exercício. — Vai me treinar ou não?